Beijo gay em novelas: afronta ou conquista?

 Não é novidade que as relações homoafetivas nas telenovelas são um ponto positivo para a visibilidade da realidade de gays e lésbicas. Vejo essa abordagem como algo muito positivo, afinal, até pouco tempo atrás, a aparição dos gays nas novelas limitava-se ao estereótipo, à figura caricata com simples função cómica. Hoje, embora tais figuras não tenham sido banidas, uma nova leitura da homossexualidade, mais justa e coerente, tem ganhado destaque na mídia televisiva: os gays e lésbicas como médicos, advogados, cabeleireiros, professores, e, principalmente, vivenciando sua afetividade da mesma maneira que ocorre com os casais heterossexuais: com seus dilemas e, também, com seus êxitos. Essa abordagem não provoca riso, mas promove a reflexão, mesmo que seja uma reflexão ainda pautada no preconceito. O importante é mostrar que não há diferenças entre heterossexualidade e homossexualidade, a não ser o objeto da atração.

Até esse ponto, revelar a existência desses casais não chega a causar tanta polémica, afinal, as manifestações físicas dessa afetividade são, ainda, bastante restritas se comparadas ao que ocorre entre os casais heterossexuais apresentados na televisão. Tenho percebido que as pessoas ainda toleram relações homoafetivas apresentadas na mídia, entretanto, essas mesmas pessoas ainda encontram muita resistência em tolerar a expressão afetiva entre casais homoafetivos. Isso explica a polémica em mostrar ou não o beijo gay na televisão.

Apesar da polêmica, no Brasil, a novela "Amor e Revolução", do SBT, saiu na frente quando levou ao ar uma cena de beijo entre as atrizes Luciana Vendramini e Giselle Tigre. A cena foi uma das mais comentadas daquela semana. A Globo, porém, apesar da constante abordagem dada a casais homoafetivos, não ousou tanto, preferindo apenas a sugestão de tal afetividade às cenas mais explícitas. Minimizar tais relacionamentos, bem como as cenas de afetividade entre eles, têm sido a postura dos diretores, tanto do SBT quanto da Globo. Isso prova que, mesmo apresentando ao público a existência dessas pessoas e seus relacionamentos, uma abordagem em pé de igualdade com a heterossexualidade ainda está distante de acontecer. O preconceito aí é muito evidente. A Globo, em nota oficial, afirma que "Nossas tramas registram a afetividade e o preconceito, mas não cabe exaltação." Ou seja, mostrar heterossexuais beijando-se não é exaltar a heterossexualidade, porém, fazer o mesmo com a homossexualidade é exaltação. São dois pesos e duas medidas. Um discurso completamente incoerente. São preconceituosos sem admiti-lo. Embora haja avanços por parte das emissoras, esse limitar das expressões afetivas mostra que a questão central não é apenas promover o fim do preconceito, mas, principalmente, manter a audiência.

Como nosso Blog tem um enfoque teológico, não é a primeira vez que beijos causam polêmica por fugir à norma. Há dois exemplos clássicos na Bíblia, bem como tentativas de censura! É! Censura! Vamos provar isso logo abaixo! Perceberemos que a sociedade pouco evoluiu quanto às minorias estigmatizadas, apesar de tantos avanços.

Certa vez, Jesus fora convidado por um fariseu para comer em sua casa (o relato está registrado no livro de Lucas, capítulo 7.36-50). Uma mulher pecadora (alvo de preconceito por ser mulher e por ser pecadora, possivelmente, uma prostituta), quebrou as regras que a mantinham à margem: sem ser convidada, entrou na casa do fariseu, ungiu os pés de Jesus com bálsamo, lágrimas e beijos! Ela chocou a todos os presentes, menos Jesus, que recebeu seu gesto de adoração, elogiando-a diante de todos e  colocando o fariseu em seu devido lugar, ao desmascarear seu preconceito e sua falsa religiosidade. Se aquela mulher não tivesse tido tal ousadia, não teria ganhado um espaço nas Escrituras, tampouco teria dado a Jesus a oportunidade de mostrar, mais uma vez, que Ele nãodiscrimina gestos de amor sincero, antes, mantém a postura acolhedora que todo cristão deve ter para com os marginalizados.

Muitas vezes chocar é preciso, não como afronta, mas como forma de sair do anonimato e conquistar a visibilidade e o respeito com que as Escrituras dignificam todos os homens e mulheres.

Outra situação em que um beijo registrado na Bíblia ainda choca foi o que ocorreu entre dois homens! Sim! Dois homens: Davi e Jônatas! Diferentemente de tudo que está registrado na Bíblia, Davi e Jônatas protagonizaram um beijo! Os teólogos ficam em maus lençóis por causa desse relato. De todo o jeito, fogem desse texto, afirmando que o beijo - ósculo - era sinal de amizade e respeito, comum entre homens, o que, de fato, era verdade A diferença do relato bíblico é que o beijo entre Davi e Jônatas foi recíproco, mútuo, caso único nas Escrituras. Calma! Não estou afirmando que houve um relacionamento entre tais personagens bíblicas. Não há provas suficientes para tal conclusão. O que está em questão aqui é o beijo, registrado em l Samuel 20.41:

E, indo-se o moço, levantou-se Davi do lado do sul, e lançou-se sobre o seu rosto em terra, e inclinou-se três vezes; e beijaram-se um ao outro, e choraram juntos, mas Davi chorou muito mais. (Edição Almeida)

Por que esse beijo choca tanto, Alexandre? É muito simples. Algumas edições da Bíblia simplesmente substituíram o verbo "beijaram-se" por "abraçaram-se". Por que tal substituição? Adivinhem! Certamente - com ocorre hoje - para minimizar qualquer conotação afetiva esse Davi e Jônatas. Vamos a um exemplo:

"Assim que o rapaz voltou, Davi saiu de onde estava escondido, perto do lado sul da pedra, e ele inclinou-se três vezes diante de Jônatas, com o rosto em terra. Então, abraçaram-se e choraram muito; Davi não parava de chorar." (Bíblia Vida, Mundo Cristão, Edição 2011)

 Concluindo: o beijo gay na mídia, sobretudo nas telenovelas, apesar de polêmico, é necessário, não como afronta, mas como forma de contribuição - apesar de desconfortável para alguns - a fim de revelar à nossa sociedade tão preconceituosa (como Simão, o fariseu) que a normalidade - sobretudo a afetividade - não é atributo de heterossexuais, mas de toda a diversidade que compõe a humanidade, independentemente do que produz a marginalização das minorias.